Tenho lido alguns críticos de Karl Marx usarem argumentos “lacradores” para refutá-lo. A nova moda é um diálogo mais ou menos assim:
— Se a classe operária tudo produz, tudo a ela pertence. (Karl Marx)
— Mas se EU tive a ideia do produto e EU financiei a produção com meu dinheiro, por que o resultado pertenceria a simples robôs? Pois se o operário apenas operou as máquinas para produzir o produto, ele não passa de um robô.
Este argumento é fruto de pura desonestidade intelectual e está carregado de falácias, as quais pretendo expor uma a uma.
Esta frase não foi dita por Karl Marx, mas sim por Ferdinan Lassalle.
Se pretendem criticar Karl Marx, critiquem-no por algo que ele tenha dito, como:
— De cada um, de acordo com suas habilidades, a cada um, de acordo com suas necessidades.
— Os trabalhadores não têm nada a perder em uma revolução comunista, a não ser suas correntes.
— O caminho do inferno está pavimentado de boas intenções.
— O medo cala a boca dos inocentes e faz prevalecer a verdade dos culpados.
— Jesus faz milagres e dá, o homem não faz milagres e vende.
(Espero que você perceba a pegadinha…)
Ainda assim Lassalle foi socialista (pré-marxista), então alguém pode alegar que a crítica ainda vale. Vamos então ao próximo erro.
A frase correta é:
— Se a classe operária tudo produz, tudo ela merece.
“Merecer” significa que o pagamento pelo serviço prestado deve ser suficiente para que o trabalhador possa adquirir o bem que produziu.
Então, segundo o pensamento lassalista, o operário que trabalha na produção de um iPhone deve ter salário condizende para que ele possa adquirir um iPhone. Veja que isso não quer dizer que ele tenha de ganhar um iPhone por mês, mas seu pagamento deve ser suficiente para que ele pague suas contas, tenha seu lazer de direito e ainda sobre para ele comprar um iPhone, ainda que a prazo.
O mesmo vale para um carro, alimentos no mercado ou serviços, mesmo software.
O que vemos é que o crítico não possui competência para questionar o argumento original, então o distorce para algo que ele possa contra-argumentar. Típico.
Aqui entra uma das falácias mais repetidas da meritocracia: como alguém poderia resolver um problema matemático sem todo o conhecimento humano sobre matemática anterior a ele e que ele recebeu de graça como elemento cultural?
Como alguém criaria um “software matador” sem toda ciência que veio dele? Sem Neumann János? Sem Alan Turing? Sem Babbage?
Absolutamente nada nos é exclusivo, tudo o que sabemos ou alcançamos nós conseguimos sobre os ombros daqueles que nos precederam.
Então nenhuma ideia que você possa eventualmente ter em toda sua vida é sua de verdade. Somos frutos de nossa cultura.
É óbvio que se alguém é autor de uma ideia, merece crédito, reconhecimento e retorno por ela, mas não pode desmerecer sua bagagem cultural. Tal desmerecimento é um apelo ao ego individualista com premissas falsas.
E esse dinheiro veio de onde? De seu esforço?
De duas, uma: ou 1️⃣ o investidor não tem dinheiro por merecimento próprio (é herança, foi adquiro ilicitamente por meios “legalistas”, privilégios, etc), ou 2️⃣ obteve através de sua própria força de trabalho, portanto, é também operário – e, equanto operário, merecedor do produto de seu trabalho exatamente como disse Lassalle.
Aqui ainda há um elemento extra de maucaratismo: para tentar ludibriar o interlocutor, o crítico ainda usa de apelo emocional ao escrever o diálogo na primeira pessoa, como no argumento da “minha” ideia.
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Lembrei de outro problema com esta lorota: a palavra robô significa escravo, ato falho do autor da crítica, explicitando como ele enxerga as outras pessoas.
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Perceba que invariavelmente os argumentos contra a luta trabalhista consistem em desonestidade intelectual.